Por que as mulheres menstruam?

Por Suzanne Sadedin

Estou tão feliz que você se perguntou isso, de verdade! A resposta para essa questão é uma das mais iluminadoras e perturbadoras histórias da evolução biológica humana, e quase ninguém sabe disso. Portanto, ó meus amigos, se aproximem e escutem o extraordinário conto de:

Como as mulheres começaram a menstruar.

Contrariamente à crença popular, a maioria dos mamíferos não menstrua. Na verdade, esta característica é exclusiva dos símios e alguns morcegos. Além do mais, as mulheres modernas menstruam muito mais que qualquer outro animal.E sinceramente, isso é uma estupidez (foi mal!). Uma perda vergonhosa de nutrientes, incapacitante e atrativa para predadores próximos.

Para entender porque nós fazemos isso, primeiro você precisa entender que mentiram pra você a vida inteira sobre uma das relações mais íntimas que podemos vivenciar: o vínculo mãe-feto.

Existe algo mais lindo que a gravidez? Olhe para qualquer livro sobre o assunto. Lá está a futura mamãe, uma mão repousando gentilmente sobre sua barriga e os olhos mareados com amor e admiração. Ao abrir o livro você lê sobre a linda simbiose, o absoluto altruísmo da fisiologia feminina ao preparar um ambiente perfeito para o crescimento da sua criança.

Se você realmente já esteve ou está grávida, você sabe que a história não é bem assim. Esses momentos de absoluto altruísmo existem, mas eles intercalam com semanas ou meses de náuseas, exaustão, dores insuportáveis nas costas, incontinência, problemas de pressão e ansiedade que você será parte dos 15% de mulheres que passam por complicações com risco de vida.

Do ponto de vista da maioria dos mamíferos, isso é loucura. A maioria dos indivíduos desta classe passa pela gravidez muito bem, evitando predadores, capturando presas, mesmo que deem luz a ninhadas de até 12 filhotes. O que nos faz tão especiais? A resposta está na nossa bizarra placenta. Na maioria dos mamíferos, a placenta, que faz parte do feto, só interage com a superfície dos vasos sanguíneos da mãe, permitindo a troca de nutrientes para o pequeno querido. Marsupiais nem permitem que seus fetos cheguem ao sangue: eles simplesmente secretam um tipo de leite através da parede uterina. Apenas alguns grupos de mamíferos, incluindo primatas e camundongos, evoluíram para o que é conhecida como placenta “hemocorial”, e a nossa é possivelmente a mais terrível de todas.

Dentro do útero nós temos uma grossa camada de tecido endometrial, que contém apenas pequenos vasos sanguíneos. O endométrio veda o nosso principal suprimento de sangue para o embrião recém-chegado. Por sua vez, a placenta literalmente se enterra nesta camada de tecido, arrebenta as paredes das artérias reorganizando-as para canalizar todo sangue para o embrião faminto. Ela cava os tecidos próximos, destruindo-os, e enche as artérias de hormônios para que elas se expandam pelo espaço criado.

Isso quer dizer que o feto em crescimento tem agora acesso direto e irrestrito ao suprimento sanguíneo da mãe. Ele pode produzir hormônios e usá-los para manipulá-la. Ele pode, por exemplo, aumentar nível de açúcar sanguíneo dela, dilatar suas artérias e aumentar a pressão sanguínea para obter mais nutrientes. E ele faz isso. Algumas células do feto inclusive podem chegar à corrente sanguínea da mãe. Elas irão crescer no seu sangue e órgãos, até em seu cérebro para o resto da vida, transformando-a em uma quimera genética.

Me dá comida!

Me dá comida!

Isso pode parecer desrespeitoso, mas na verdade, é uma competição evolucionária. Veja bem, a mãe e o feto têm interesses evolucionários bem distintos. A mãe “quer” dedicar os recursos igualmente a todos os seus possíveis futuros filhos e nada àqueles que morrerão. O feto, por sua vez, “quer” sobreviver e pegar o máximo que puder. (As aspas são para indicar que não é isso que eles querem conscientemente, mas o que a evolução aperfeiçoou).

Existe ainda um terceiro envolvido nessa história – o pai, o qual os interesses estão menos alinhados ainda com os da mãe porque a próxima prole da mulher pode nem ser sua. Através de um processo chamado imprinting genético, certos genes fetais herdados do pai podem ser ativados na placenta. Esses genes impiedosamente promovem a sobrevivência do feto aos custos da mãe.

Mas porque nós desenvolvemos essa placenta hemocorial tão voraz que dá ao nosso feto e a seu pai um poder tão inusitado? Apesar de nós observarmos uma tendência das placentas invasivas nos primatas, a resposta definitiva está perdida no tempo, pois úteros não fossilizam muito bem. No entanto, as consequências são bem claras.

A gravidez normal de um mamífero é um assunto bem ordenado, pois a mãe é uma déspota. A prole vive ou morre sob sua vontade; ela controla o suporte de nutrientes e pode expelir ou absorvê-los a qualquer momento. A gravidez humana, por sua vez, é comandada por um comitê – e não um comitê qualquer, mas um composto por membros com interesses concorrentes e bem divergentes, que dividem apenas parte das informações entre si. É um cabo de guerra que não é incomum de evoluir para uma briga, e ocasionalmente, para uma batalha! Muitos dos distúrbios potencialmente letais como gravidez ectópica, diabete gestacional e pré-eclâmpsia podem ser relacionados a tropeços neste íntimo jogo.

Mas o que isso tudo tem a ver com a menstruação? Estamos chegando lá.

Da perspectiva feminina, a gravidez é sempre um grande investimento, ainda mais se sua espécie tem placenta hemocorial. Assim que a placenta se estabelece, a mãe não só perde o controle de seus hormônios como também corre risco de hemorragia quando a placenta sai. Então faz sentido para a fêmea fazer uma triagem meticulosa dos embriões. Passar por uma gravidez com feto fraco ou inviável não vale a pena, e é ai que o endométrio entra no jogo.

Você provavelmente já leu sobre como o endométrio é um ambiente aconchegante, acolhedor, só esperando para cuidar do jovem e delicado embrião em seu abraço nutritivo. Na verdade, é justamente o contrário. Pesquisadores, abençoados sejam seus coraçõezinhos curiosos, já tentaram implantar embriões em várias partes do corpo de camundongos. O lugar mais difícil deles crescerem foi o endométrio.

Longe de oferecer o abraço nutritivo, o endométrio é um terreno inóspito onde apenas os embriões mais fortes prevalecem. Quanto mais a fêmea consegue atrasar que a placenta atinja a corrente sanguínea, mais tempo ela tem para decidir se ela quer se desapegar do embrião sem custos significativos. Já o embrião quer implantar sua placenta o mais rápido possível, tanto para obter acesso ao suculento sangue da mãe quanto para aumentar suas chances de sobrevivência. Por essa razão, o endométrio se tornou tão hostil e grosso – e a placenta, correspondentemente, mais agressiva.

Tá olhando o que vacilão? Quer tentar a sorte?

“Tá olhando o que vacilão? Quer tentar a sorte?”

Mas esse desenvolvimento gerou um novo problema: o que fazer quando o embrião morre ou fica preso semivivo no útero? O aporte sanguíneo à placenta deve ser restrito ou então o embrião simplesmente se estabelecerá lá mesmo. Mas reduzir o aporte sanguíneo torna o tecido pouco responsivo aos sinais hormonais da mãe, e potencialmente mais susceptível aos sinais de embriões, próximos, que naturalmente gostariam de persuadir o endométrio a ser mais amigável. Além disso, neste estado, a placenta se torna vulnerável à infecção, especialmente quando contém tecidos mortos ou morrendo.

A solução, para os símios, foi lentamente desprender todo o endométrio superficial – embriões mortos e tudo – após cada ovulação que não resultou em uma gravidez saudável. Não é exatamente brilhante, mas funciona, e mais importante: é fácil de ser alcançado, necessitando de apenas alguns ajustes no trajeto bioquímico normal feito no caso de uma gravidez. Em outras palavras, é justamente o tipo de coisa pelo qual a seleção natural é conhecida: soluções estranhas e engenhosas para resolver problemas. Não é tão mal quanto parece, pois na natureza, as mulheres passariam por menstruações bem raramente – provavelmente não mais do que 30 vezes em suas vidas entre a amenorreia lactacional e as gestações.43_tomrhodes-evolution-small

Nós não sabemos ainda como nossa placenta mega-agressiva está relacionada a outros traços que se combinam para tornar a humanidade tão única. No entanto, esses traços emergiram juntos de alguma maneira e isso quer dizer que, de certa forma, nossos ancestrais estavam certos. Quando nós, metaforicamente, “comemos o fruto do conhecimento” – quando começamos nossa jornada em direção à ciência e tecnologia que nos separaria de animais inocentes e nos levara um sentido peculiar de moralidade sexual – talvez tenha sido na mesma época que os sofrimentos ímpares da menstruação, gravidez e parto foram infligidos nas mulheres. Tudo isso graças à evolução da placenta hemocorial.

 

Referências

Chan W et al., 2012 Male microchimerism in the human female brain Plos One

Emera D et al., 2013 The evolution of menstruation: A new model for genetic assimilation Bioessays

Finn C, 1998 Menstruation: a nonadaptive consequence of uterine evolution  Q Rev Biol.

Haig D, 1993 Genetic conflicts in human pregnancy Q Rev Biol.

Teklenburg G et al., 2010 Natural selection  of human embryos: decidualizing endometrial stromal cells serve as sensors of embryo quality upon implantation Plos One

Texto originalmente publicado aqui

 

SOBRE A AUTORA:

Suzanne Sadedin é uma bióloga evolutiva que estuda especiação, auto-organização e evolução social. Ela completou seu Ph.D na Universidade de Monash, Austrália, e desde então é pós-doc na Universidade do Tennessee, EUA,  pesquisadora associada em Harvard, EUA, e pesquisadora convidada em KU Leuven, Bélgica. Além de responder questões no Quora, ela gosta de curtir com sua filha, ler e escrever ficções científicas e caminhar pela floresta de sequoias da Califórnia. 

 

 

6 respostas em “Por que as mulheres menstruam?

  1. Pingback: Filho e mãe: ele com os olhos dela e ela com os genes dele | Prisma Científico

      • Fala Jean, obrigado pela sua preocupação. Antes de iniciármos a tradução do texto nós entramos em contato com a autora e ela, além de nós ajudar com a adaptação do mesmo, autorizou a publicação dele no nosso blog. Como é possível ver, nós colocamos um link para o Quora após o texto para quem quiser ler o original.

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